terça-feira, 29 de maio de 2018

Um bocejo

Escuta! O silêncio, a melodia da minha preexistência.

A imagem reflectida num lago é sempre mais bela que a real. Há uma leveza que vem da sua inexistência, que a torna bela.

Acordo sem saber de onde vem a luz. Espreguiço-me e a estranheza desvanece-se, e já não há diferenças que identifique depois do bocejo matinal. Ainda que as ruas cheirem diferente, ainda que o som das avenidas seja estranho, mesmo com todas as peculiaridades sinto que já vi toda esta gente. Não há pessoa que não identifique pelo andar, pelo falar. Conheço os a todos, antecipo todos os seus movimentos. Nada que façam me surpreende. Minha cara pode mostrar o contrário, mas é puro teatro. Em mim não há sentimento ou emoção que não seja artificial. Todas as conversas, todos os movimentos, são meticulosamente estudados previamente. Não há em mim qualquer espontaneidade (para além daquele bocejo matinal). Não há dia que já não tenha vivido. Não há conversa que já não tenha ouvido. Não há cor que não tenha visto. Acordo já cansado. É apenas aquele momento antes de acordar, o momento ulterior ao sonho, que minha mente estranha.

Que triste manhã a de hoje. As avenidas cheias de uma massa indistinta de gente que corre como um rio de lama que arrasta consigo minhas ilusões. Eu rastejo na sombra sibilando para afastar o tédio. E deixo na avenida um rasto de escamas que perco sem saudade.

Que vontade em atirar me para a estrada movimentada e fazer da minha existência um linha do obituário local. Sempre era mais que duas datas numa mármore fria.

27/12/2017, Hamburgo

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